terça-feira, 8 de março de 2016

Apartamento 316



A pior parte de uma mudança é a saudade. Algo que não necessariamente impede uma mudança de ocorrer, visto que é um efeito colateral a ser sentido somente depois de desempacotar as coisas da última caixa a ser aberta. E ao olhar suas coisas guardadas em um ambiente novo, com vista para uma rua que você ainda não sabe exatamente aonde leva, de uma cidade que ainda não parece estar disposta a ser sua, é aí que você se dá conta do que ficou para trás. Da vida que não podia ser transportada no caminhão. Junto aos móveis, as coleções de livros e DVDs, as caixas de louça e copos que invariavelmente teriam um ou dois trincados entre eles. É fato que algo sempre quebra em uma mudança. Mas quanto ao que se parte, isso a gente só descobre mesmo depois.

Porque o lar que eu construí para mim, antes da mudança para Foz do Iguaçu acontecer, não pertencia só a mim. As bugigangas nas prateleiras da estante da sala, os quadros pendurados nas paredes e os eventuais danos ao imóvel eram sim de minha autoria. Mas a vida que se passava dentro daquele apartamento era maior do que a disposição dos cômodos. Amigos riam juntos sobre as besteiras que fizeram e disseram na noite anterior quando foram a um show ou um barzinho por aí. Familiares se reuniam para festas de fim de ano e outras comemorações sazonais em que um brinde era sempre justificado. E em todos os cantos daquela casa havia uma história a ser lembrada. Histórias de um jovem de 17 anos que saiu de casa para morar em outra cidade e eventualmente se encontrou morando sozinho e trabalhando para manter a vida complicada que tinha. Em prol da vida que sonhava ter, nunca realmente desistiu de alcançar tudo aquilo pelo que havia deixado uma outra vida para trás.

Eu sinto falta daquele apartamento e das pessoas que frequentavam a vida que tínhamos ali. E é algo que invariavelmente pesa em mim todos os dias desde que fui embora mais uma vez. Quando o meu sonho se deslocou para uma nova cidade e me fez escolher entre torná-lo realidade ou acomodar-me a um cotidiano repleto de amizades, risadas e companhias inestimáveis... Mas que sempre voltavam para suas próprias casas e suas próprias vidas no final do dia. E o que mais pesa em mim são as histórias que acumulamos juntos com o passar dos anos. Histórias que sempre fiz questão de compartilhar com eles, porque sempre soube que minha jornada poderia ser difícil ou parecer interminável às vezes. Mas nunca foi solitária. Até o ponto em que eu decidi partir mais uma vez. E aquelas pessoas, tão inigualáveis e incríveis, sabiam porque eu estava indo e que isto era o certo a ser feito, por mais que nos custasse aquele apartamento.

Foi nele que festejamos uma última vez. Antes do caminhão de mudança encostar no portão e de milhares de caixas serem carregadas até um novo endereço. Repletas de lembranças de momentos tanto bons quanto ruins, mas inesquecíveis mesmo assim. E a falta que me fazia daquelas pessoas às vezes me reduzia a um canto desta nova casa que ainda não parecia um lar, porque nada remetia a lembrança alguma. A história estava recomeçando e não havia no que ou em quem me amparar. O que sempre me levava às mensagens e aos telefonemas de madrugada, perguntando se isso havia sido um erro.

Eu sentia falta de ser livre com vocês. De escutar o interfone tocar e nem me dar ao trabalho de atendê-lo, porque já me dirigia à sacada para jogar a chave para que pudessem entrar sozinhos. Já que o portão eletrônico estava com defeito e nossa intimidade me permitia o conforto de esperar que vocês mesmos subissem aqueles três lances de escadas. E vocês sabiam que sempre me encontrariam sentado em uma das cadeiras da sacada, com alguma bebida em mãos, esperando por quem chegasse primeiro para ouvir sobre a última desventura na qual me envolvi e que precisava de ajuda para resolver.

Eu sentia falta de conseguir falir com vocês. De ficar arrasado com vocês. De ser capaz de desabar em bobagens ou lágrimas que se fizessem necessárias, porque não aguentava mais fingir que estava tudo bem. E vocês sabem quanto tempo levou para que eu aprendesse a abrir mão do controle, a pedir ajuda e a tirar uma noite para me sentir simplesmente mal. Se fosse isso que eu precisasse antes de seguir em frente no amanhã seguinte. Mas acima de tudo, eu sentia falta de ser divertido. De chorar de rir de idiotices e brincadeiras de mal gosto que só nós sabíamos fazer. Que poderiam parecer insensíveis ou sem sentido para quem estivesse de fora, mas que nós ali entendíamos que nada daquilo era por mal. Era só amizade na sua mais pura e demente forma de felicidade. Ninguém sabia fazer com que eu me sentisse divertido como vocês. E por “divertido”, quero dizer “especial”.

Nós construímos algo incrível. Aquele apartamento tornou-se um oasis para os perdidos e os desorientados. E aquela sacada então, não era nada senão terapêutica para quando precisávamos de um lugar para sentar com uma bebida em mãos e um céu azul ou estrelado acima de nós. Com direito a mais uma cadeira que, com o passar dos anos, vi muita gente sentada à minha frente. Desabafando, chorando e desejando por dias melhores.

Como eu iria encontrar isso em outro lugar, sem vocês?! Se ninguém nessa cidade me conhecia nem sabia que eu poderia ser um bom amigo. Que não iria abandoná-los quando precisassem de mim e sempre responderia suas mensagens de madrugada caso algo acontecesse. Eu não sei o que vai ser de mim aqui. Não sei se isso vai dar certo. Eu não sei. EU NÃO SEI!

***

Foram meses de espera e adaptação. De telefonemas chorosos, mensagens de amizade e conversas toscas que inventávamos. Só para nos lembrarmos de que, mesmo sem termos mais a chave daquele apartamento em mãos, nós ainda estávamos juntos. Só não estávamos mais tão perto. E vocês me diziam que era só uma questão de tempo para que eu pudesse construir algo parecido com aquilo de novo. Com pessoas que eu iria conhecer com quem eu sentiria que era possível compartilhar uma vida de novo. E não deve surpreender vocês agora que eu admito que tinham razão. Porque pela primeira vez em sete longos meses, eu comecei a conhecer pessoas que fizeram com que eu me sentisse divertido de novo. E por “divertido”, quero dizer “especial”.


Eles não são vocês. Nem nunca poderão ser. Mas eu estou construindo algo novo aqui. E se eu finalmente me sinto capaz disso de novo, definitivamente é por causa de vocês. E farei questão que eles conheçam as nossas histórias. E que saibam que qualquer sucesso que eu conquiste nessa vida daqui em diante, por mais que pessoas novas estejam perto de mim para compartilhar, eu devo tudo ao apartamento 316. 


E mesmo sem estar por perto para oferecer um ombro amigo ou um comentário sarcástico maldoso, sem as noites na sacada ao som do DVD do Engenheiros do Hawaii tocando na TV na sala e sem as reuniões semanais na Martignoni Bier, eu continuo com vocês. 
Obrigado por também continuarem comigo.